“Sólo sé que no sé nada” à Argentina: Resenha do “Museu do Romance da Eterna” de Macedonio Fernández

Acho que devo começar essa resenha ressaltando a inocência que me rodeava quando escolhi essa obra. A ideia era participar do desafio e eu tinha pouco tempo para conseguir um livro adequado, e esse estava pelos labirintos das minhas estantes. Era de um argentino muito bem recomendado por Jorge Luís Borges. Eu devia ter desconfiado a partir daí, mas essa escola fantástica latinoamericana povoa muito do meu imaginário e me lancei confiante ao que me parecia um romance tranquilo, de edição super bem feita.

Veja bem… Eu fui muito inocente.

“Museu do Romance da Eterna” é, por incrível que pareça, difícil de por em palavras. Em primeiro lugar, não é um livro para ser ler no transporte público. Também não é um livro pra se ler deitado na cama, antes de dormir. Não é um livro pra se distrair. Tampouco é um livro pra se ler somente uma vez, e é por isso que me sinto até insegura de estar aqui, escrevendo essa resenha.

Uma das grandes excentricidades da composição desse livro nos foi privada pela edição, já que só contamos com o que ele chama de Primeiro Romance Bom, e que deveria ser publicado junto com o Último Romance Ruim (Adriana Buenos Aires). Provavelmente os argumentos dele ao redor do que é a Arte e sobre o tipo de escrita que melhor a satisfaz, ficasse mais claro com esse outro livro ao lado servindo de comparativo. Mas essa é uma suposição minha.

Tá, e o livro? Bem… A maior parte do romance é composto por prólogos, e prólogos de todas as espécies. Eles nos apresentam os personagens mas, mais do que isso, falam a respeito dos temas que interessam ao autor, sobre os quais planeja argumentar de capa a capa. (Vale dizer que foi daqui que tiramos a inspiração do texto Prólogo #1 e que pretendemos transformar numa seção com textos que contarão um pouco mais sobre o que se pensa e o que se propõe aqui no Forasteras.) De maneira resumida e – devo dizer – bastante rasa Macedonio versa sobre sua teoria da literatura e seu conceito de metafísica. Muito se fala sobre o Mistério, e muito se fala sobre a morte, ou sobre a impossibilidade da morte do ponto de vista metafísico, ou sobre o não poder morrer uma vez que não se é… Pois é, confuso, eu sei… E isso é só a pontinha do iceberg.

Conforme nos apresenta as personagens, que mais trabalham como conceitos que perambulam pelas páginas, ele se pretende a contar tudo que viria ou não a ocorrer com elas. Se gaba de não torturar o leitor com a pura expectativa, guardando segredos, mas despejando desde o início tudo que irá se desenrolar nas próximas páginas. Veja bem, eu até acredito que ele falou sobre as ações dos personagens, mas o nível das digressões que ele realiza, te levando para debates conceituais e filosóficos, apagam esse enredo da sua primeira leitura. Mesmo quando vencemos os prólogos e, armados de conhecimento nos lançamos na história propriamente dita, nos deparamos com uma estância chamada “O Romance” onde se encontram os personagens, e que parece o mais absurdo dos lugares.

Não há exatamente uma história a ser contada, ainda que existam personagens e relações que se tecem entre eles, mas que também se tecem entre eles e o autor e entre eles e o leitor. Sendo que essas relações não são simplesmente de amor ou discórdia, elas vão muito além, alcançando discussões que giram em torno da existência ou não de suas capacidades de sentir uma vez que, sendo personagens, não são realmente reais. Creio que podemos lê-la como uma obra metalinguística, onde se conversa sobre o próprio escreve e sobre o próprio ler. Existem trechos inteiros voltados à classificação dos tipos de Leitor, colocando-os como ativos participantes da construção do texto e da história.

É uma obra praticamente indescritível e totalmente livre de spoilers, pois não narra nada específico. Ela te leva pela mão, mas sem subestimar a sua inteligência, por caminhos tortuosos de reflexões que às vezes até te passaram pela nossa cabeça, mas foram jogadas para debaixo do tapete do “complexo demais pra sair sã disso”. Nas palavras do autor:

“Em outros termos: o efeito consciencial que busca este romance é delinear na inteleccção do leitor o mero ser consciencial sem mundo, como uma possibilidade inteligível. Desacreditar toda a livralhada de romances de que já não é tempo, narrativas de fatos de cortiço, de homem atuante sobre o mundo e atuado pelo mundo; a consciência sem causa, cuja operatividade se apresenta.
O século atual da humanidade não é para relatos de fatos da relação Cosmos-Pessoa, e sim para o sonho da consciência, para o Indivíduo meramente psíquico, libertado do Cosmos.”
pg. 217, Museu do Romance da Eterna

O mais impressionante de tudo isso é que, ao procurarmos o que Jorge Luís Borges têm a dizer sobre Macedonio Fernández, encontramos que o que foi escrito por este não guardava a real genialidade e espontaneidade do autor. Tido como uma das maiores influências das vanguardas literárias argentinas por alguns de seus maiores expoentes, como Borges e Ricardo Piglia, há uma aura de misticismo socrático, onde para além do que deixou para trás, é a lembrança de como viveu e de como agia na vida que trazem pesadas cargas de influência e inspiração.

Como eu disse, essa é uma resenha demasiado rasa para as possibilidades de leitura desse livro e desse autor. Ao mesmo tempo, essa era parte das intenções de Fernández que, nas páginas finais, convida o leitor a continuar ou a reescrever sua história, dando-lhe ou não crédito. Tantos são os tópicos, tantas são as propostas e os símbolos e as metáforas que fica impraticável tratar de todas elas.

Tentei aqui dar um pequeno vislumbre dessa incrível viagem que deve ser feita várias e várias vezes. Fica aqui o convite e a recomendação do trajeto, e o aviso: não se surpreenderam se aparecerem textos futuros e em momentos altamente inusitados acerca dos mistérios e absurdos do “Museu do Romance da Eterna”.

 


 

Bibliografia:

http://letras-uruguay.espaciolatino.com/aaa/fernandez_m/bio.htm

http://www.nexos.com.mx/?p=4876

14 comentários em ““Sólo sé que no sé nada” à Argentina: Resenha do “Museu do Romance da Eterna” de Macedonio Fernández

  1. Olá!

    Seu texto está muito bem escrito, mas preciso ler o livro para poder entender a mensagem que ele quer transmitir. Apesar da sua resenha, a premissa dessa obra me pareceu bem confusa. Ele fala de tudo e de nada ao mesmo tempo, ele fala, fala e fala mas não sai do lugar. Vou pesquisar sobre ele e se eu conseguir um exemplar, o lerei.

    resenhaeoutrascoisas.blogspot.com

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  2. Olá, tudo bem?
    Sua resenha está incrível e muito bem desenvolvida. Como você ressaltou, o livro é daqueles que merece nossa total atenção para poder ser entendido. A premissa me pareceu bem confusa, no entanto, me deixou bastante instigada em conhecer a obra mais a fundo. Anotei (bem) o nome do livro e vou pesquisar mais sobre ele. Parabéns pelo belo texto.

    Beijos,
    Dai | Blog Cheiro de Livro Nacional

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  3. Primeiramente, que resenha maravilhosa. Agora preciso te dizer que eu fiquei bem curiosa a respeito da obra. Me parece excelente mesmo.
    Vejo que o Borges indica muitos livrões, mas ainda não tive oportunidade de lê-los. Quero mudar isso o mais rápido possível

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    1. Obrigada pelo retorno, Ingrid. É bom saber que a minha escrita está agradando ^_^

      Espero que você busque tanto este livro quanto os de Borges, vale super a pena (mesmo com as consultas constantes ao google hehehe).

      ;*

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  4. pelo que conheço da escrita de Borges e sendo uma indicação dele, acredito que eu leria esse livro, mesmo achando a leitura confusa… acho que é o tipo de obra pra se ler aos poucos, em pequenos goles, e volta e meia consultando o google hahaahh

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    1. De fato é um livro bem desconhecido para nós, brasileiros, o que é muito esquisito, quando você vê que o resto da latinoamérica têm uma relação quase igual a que nós temos com Dom Casmurro com essa obra.

      Fico agradecida pelo elogio. É sempre bom saber que o que a gente escreve está agradando ^_^

      Beijos ;*

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